terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

COMO UM ROMANCE – DANIEL PENNAC



"O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo ‘amar’... o verbo ‘sonhar’... Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: ‘Me ame!’ ‘Sonhe!’ ‘Leia!’ ‘Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!’”
- Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu em cima do livro. A janela, de repente, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa qualquer tentadora. Foi por ali que ele decolou. Para escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos a porta de seu quarto, nós o encontramos sentado junto à escrivaninha, seriamente ocupado em ler. Mesmo se nos aproximamos na ponta dos pés, da superfície de seu sono ele nos terá escutado chegar.
- Então, não está gostando?
Ele não vai nos responder que não, isto seria um crime de lesa majestade. O livro é sagrado, como é possível não gostar de ler? Não, ele vai dizer que as descrições são longas demais.
Tranquilizados, voltamos ao nosso aparelho de televisão. E é até possível que esta reflexão suscite um apaixonante debate entre nós e os outros como nós...
- Ele acha as descrições longas demais. É preciso entender, estamos no século do audiovisual, evidentemente os romancistas do século dezenove tinham que escrever tudo...
- Mas isto não é razão para pular a metade das páginas!
Não vamos nos cansar, ele voltou a dormir.

Essa aversão pela leitura fica ainda mais inconcebível se somos de uma geração, de um tempo, de um meio e de uma família em que a tendência era nos impedir de ler.
- Mas pára de ler, olha só, você vai estragar a vista!
- Sai, vai brincar um pouco, está fazendo um tempo tão bonito!
- Apaga! Já é tarde!
É isso, o tempo estava sempre bom demais para ler, ou então era a noite, escura demais.
Note-se que em ler ou não ler, o verbo já era conjugado no imperativo. Mesmo no passado, as coisas não davam certo. De um certo modo, ler, então, era um ato subversivo. À descoberta do romance se juntava a excitação da desobediência familiar. Duplo esplendor! Ah, a lembrança dessas horas de leitura roubadas, debaixo das cobertas, à luz fraca de uma lanterna elétrica! Como Anna Karenina galopava depressa-depressa para junto do seu Vronski, naquelas horas da noite! Eles se amavam, aqueles dois, e isso já era lindo em si, mas eles se amavam contra a proibição de ler e isso era ainda melhor. Eles se amavam contra pai e mãe, se amavam contra o dever de matemática não terminado, contra a “dissertação” a preparar, contra o quarto por arrumar, eles se amavam em vez de irem para a mesa, eles se amavam antes da sobremesa, eles se preferiam à partida de futebol, à colheita de cogumelos... eles se tinham escolhido e se preferiam a tudo mais... Ah, meu Deus, o belo amor!
E como o romance era curto.

COMO UM ROMANCE – DANIEL PENNAC

Nenhum comentário:

Postar um comentário