sexta-feira, 16 de novembro de 2012

AO GÁS (O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL) - CESÁRIO VERDE


AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.

Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

 

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.

 

As burguesinhas do Catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

 

Num cutileiro, de avental, ao torno,

Um forjador maneja um malho, rubramente;

E de uma padaria exala-se, inda quente,

Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

 

E eu que medito um livro que exacerbe,

Quisera que o real e a análise mo dessem;

Casas de confecções e modas resplandecem;

Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

 

Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos reverberos,

E a vossa palidez romântica e lunar!

 

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,

Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!

Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,

Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

 

E aquela velha, de bandós! Por vezes,

A sua traîne imita um leque antigo, aberto,

Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,

Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

 

Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

 

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes

Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;

Da solidão regouga um cauteleiro rouco;

Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

 

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim!

 

Noite Fechada (Osentimento de um ocidental) - Cesário Verde


NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som

Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!

O Aljube, em que hoje estão velhinhas e criancas,

Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

 

E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,

Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

 

A espaços, iluminam-se os andares,

E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos

Alastram em lençol os seus reflexos brancos;

E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

 

Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,

Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

 

Na parte que abateu no terremoto,

Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;

Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos dum tanger monástico e devoto.

 

Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!

 

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

 

Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;

Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,

Derramam-se por toda a capital, que esfria.

 

Triste cidade! Eu temo que me avives

Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,

Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,

Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

 

E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;

Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

E muitas delas são comparsas ou coristas.

 

E eu, de luneta de uma lente só,

Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:

Entro na brasserie; às mesas de emigrados,

Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

Ave Marias (O Sentimento de um Ocidental) - Cesário Verde


O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

            I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

 

O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

 

Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista, exposições, países:

Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

 

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

 

Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,

Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

 

E evoco, então, as crónicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

 

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinido de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

 

Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

 

Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.

 

Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

 

Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecção!
 
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa em 25 de fevereiro de 1855, morreu em Lisboa a 19 de Julho de 1886, vítima de tuberculose.  Filho de um lavrador que se tornou negociante, passou sua curta vida praticamente entregue aos interesses paternos, gozando no entanto de uma situação econômica confortável que lhe possibilitava entregar-se a leituras que começou a fazer cedo. Chegou a freqüentar o Curso Superior de Letras, sem estar presente no ambiente literário assiduamente. Nessa época tornou-se amigo de Silva Pinto, que lhe editaria um ano após sua morte o único volume de poemas: O livro de Cesário Verde.
            Podemos apreciar a modernidade urgente da sua poesia, que cabe toda em 166 páginas (reedição de Dom Quixote, com fixação de texto e nota introdutória de Joel Serrão e revisão e notas de Jorge Serrão). Cesário Verde pode ter morrido cedo, pode ter sido esquecido, pode ter sido uma das vítimas da sombra pessoana projetada sobre quase toda a poesia portuguesa posterior. Continua a ser um dos maiores poetas da língua. Cesário Verde é mais conhecido por causa do seu “Sentimento de um Ocidental”, que a vulgata adotou como tema e transfiguração de uma Lisboa de fim de século.
            Em 1887, com uma tiragem de 200 exemplares, foi publicado pela primeira vez O Livro de Cesário Verde. Cesário é mais um poeta do século XX do que do século em que nasceu, e a sua linguagem, estilo, métrica, vocabulário, a concisão dos seus “alexandrinos originais e exatos”, como ele diz, sagram-no como um dos inventores da língua portuguesa, pois Cesário libertou a língua das amarras do lirismo piegas e do sentimento exaltado, das teias de aranha do ideal parnasiano e do romantismo rendilhado.
            Sua poesia se alimenta do prosaico, do concreto, do cotidiano. Poesia que muda os dias finados do famoso spleen, essa vaga inquietação existencial, esse mal-estar, essa indisposição, numa atitude estética que precede as interrogações e angústias ontológicas da modernidade. Cesário usa o português sem “rodriguinhos nem enfeites” (expressão portuguesa), usa a seriedade de uma língua sem lhe roubar a riqueza. O mais pequeno e simples, trivial e despercebido, passando pelos olhos de Cesário, torna-se grandioso e complexo, especial e observado, objeto de reflexão e fonte de inspiração. Cesário Verde conseguiu dar expressão poética à realidade objetiva e cotidiana. Na sua obra, ganham beleza e sentido o cabaz da hortaliça, os frutos, a madeira das árvores, os instrumentos de trabalho dos carpinteiros, as ruas de Lisboa, as vitrinas das lojas, as manhãs atarefadas e as noites alumiadas a candeeiros a gás. Tudo isto é tratado de uma forma impressionantemente exata, numa linguagem simples, coerente e comum.
            Poeta da cidade, um dos maiores em qualquer tempo em qualquer língua, por isso mesmo que genuíno, original, profundamente renovador, quer ao descrever os quadros e os tipos citadinos, quer ao denunciar, em sóbrias palavras, as atitudes subjetivas provocadas pela vida exterior.
            Cesário tem o culto da descrição, da contenção. A sensibilidade e a fantasia são nele dominantes pela estética anti-romântica, pela reserva irônica, pela sábia composição, pelo gosto de polir a frio os seus versos.
 

Mulheres de Atenas - Chico Buarque - Augusto Boal


Mulheres de Atenas - Chico Buarque - Augusto Boal   1976

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seu maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas

As sem-razões do amor - Carlos Drummond de Andrade


As sem-razões do amor -  Carlos Drummond de Andrade

 


Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

"Ser ou não ser eis a questão! (Hamlet de William Shakespeare)


"Ser ou não ser eis a questão!

         Que é mais nobre para o espírito? Sofrer os dardos e setas de um ultrajante Fado ou tomar armas contra um mar de calamidades e resistindo pôr-lhes fim?

         Morrer...Dormir...Nada mais!

         E com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração e os conflitos, herança da carne. Que fim poderia ser mais devotadamente desejado?

         Morrer. Dormir. Dormir, talvez sonhar. Sim, eis a dificuldade. Porque no sono da morte, que sonhos podem sobrevir quando nos tivermos libertado do torvelinho da vida? Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa! Porque quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade da lei e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno quando ele pudesse encontrar quietude com um simples estilete?

         Quem suportaria tão duras cargas gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de algo depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade e impedindo-nos de suportar aqueles males que nos afligem em vez de nos atirarmos a outros que desconhecemos?

         E é assim que a consciência nos transforma em covardes e é assim que o primitivo verdor de nossas resoluções se estiola na pálida sombra do pensamento, e as empresas de maior alento e importância no momento, com tais reflexões, desviam seus cursos e deixam de ter o nome da ação.”

                     (Hamlet de William Shakespeare)

Lições de amor para iniciantes - ALAIN DE BOTTON



Filósofos ajudam a jovem e arrebatada Julieta a compreender sua paixão

 


Lições de amor para iniciantes


ALAIN DE BOTTON

Como a filosofia lhe pode ser útil quando você se apaixona? Imaginemos uma alma arrebatada pelo amor, Julieta , no auge da agonia, do êxtase e da confusão, implorando conselhos a algum dos grandes filósofos do amor.

Julieta - Será mesmo que os filósofos podem me ajudar a compreender minha paixão? Mal consigo ler um livro, não paro de pensar nos olhos de Romeu.

Resposta - O livro mais famoso sobre o amor é "O Banquete", de Platão (428/27-347 a.C.); e o bom é que ele só tem 80 páginas.

Julieta - O senhor pode me contar a trama?

Resposta - Trata-se de um banquete durante o qual alguns antigos atenienses tentam explicar por que o amor exerce tanto poder sobre nós. Um dos convidados, Aristófanes, lembra que, quando amamos uma pessoa, ela nos parece familiar, como se já a conhecêssemos antes, talvez numa vida pregressa ou em nossos sonhos. Segundo ele, a pessoa amada é nossa "outra metade" há muito perdida, a cujo corpo estávamos originalmente ligados. Todos os seres humanos foram criados como hermafroditas, com costas e flancos duplos, quatro mãos e quatro pernas e dois rostos virados em direções opostas na mesma cabeça. Esses hermafroditas eram tão poderosos, seu orgulho tão devastador, que Zeus foi forçado a cortá-los em dois, numa metade masculina e outra feminina e desde esse dia todos almejam se reunir à metade de que foram separados.

Julieta - E o que os outros convidados disseram sobre isso?

Resposta - Bem, Sócrates era quem mais falava, e ele expôs uma teoria que ficaria conhecida como "amor platônico". Quando somos jovens e ignorantes em filosofia, ele disse, tendemos a nos apaixonar por pessoas fisicamente atraentes, com quem queremos dividir a cama. Infelizmente, essa não é uma forma muito pura ou nobre para Sócrates, embora com o devido aconselhamento possamos chegar a ver que a beleza específica de um corpo é somente um exemplo da beleza dos corpos em geral. Quando nos damos conta disso, nossa fixação maníaca por um corpo em particular diminui e passamos a amar a beleza onde quer que ela se encontre. Somos capazes de aprender que a beleza da alma é muito mais valiosa do que a beleza física. É a partir daí que passamos a apreciar a beleza da ciência e a da filosofia, chegando por fim a apreciar a beleza da beleza. Para Sócrates, o amor começa com a paixão por um corpo atraente e termina no amor pela beleza absoluta.

Julieta - Então o verdadeiro amor não envolve sexo?

Resposta - O desejo sexual não é irrelevante para o amor, mas é uma versão de qualidade inferior do amor sublime que descobrimos quando abandonamos nossos desejos físicos - uma visão que encontrou abrigo junto aos pensadores do cristianismo primitivo e que explica os tradicionais problemas do Ocidente com o corpo.

Julieta - Por que os filósofos são sempre tão puritanos?

Resposta - Não é bem assim. Para Schopenhauer (1788-1860), por exemplo, "o sentimento amoroso radica exclusivamente no impulso sexual". O amor é apenas um nome inventado que damos a um impulso de reprodução da espécie. "(O amante) imagina que se esforça e se sacrifica por seu próprio prazer, mas tudo o que faz, na verdade, é guiado pela reprodução da espécie."

Julieta - Mas isso faz a paixão parecer trivial e rasteira.

Resposta - Nem tanto; aos olhos de Schopenhauer, nada podia ser mais importante. "(O amor) é digno da profunda seriedade com que todos o buscam; ele decide nada menos do que o substrato da nova geração." Em sua obra máxima, "O Mundo como Vontade e Representação" (infelizmente bem mais longa do que "O Banquete"), Schopenhauer explica por que o amor é um tema eterno: "(O amor) é o objetivo último de quase toda a preocupação humana; é por isso que ele influencia nos assuntos mais relevantes, interrompe as tarefas mais sérias e por vezes desorienta as cabeças mais geniais. Ele não hesita em interferir nas negociações dos homens de Estado e nas investigações dos sábios. Ele sabe como insinuar seus bilhetes de amor e seus anéis de cabelo nas pastas ministeriais e nos manuscritos filosóficos".

Julieta - Podemos ser felizes no amor? Alguma vez os filósofos foram otimistas quanto a isso?

Resposta - O impulso para o pensamento raramente atinge os satisfeitos, portanto a resposta é não. Veja Nietzsche (1844-1900), para quem o amor era uma guerra: "O amor é o ódio mortal dos sexos".

Julieta - Por quê?

Resposta - Porque "o homem quer o poder incondicional sobre a alma e o corpo da mulher". Além disso, Friedrich achava que "a vontade de reinar é a marca dos homens mais sensuais". A seu ver, as mulheres desejam apenas "pertencer" a um homem viril. "O que uma mulher entende por amor é uma dádiva total do corpo e da alma, sem reservas."

Julieta - Um assunto não muito indicado para o primeiro encontro, não é?

Resposta - Ele não é o único que tem essa visão sombria. As coisas só pioram se passamos a Jean-Paul Sartre (1905-80), para quem o amor é um "ideal irrealizável". E isso porque queremos algo impossível das pessoas que amamos: somos atraídos pela liberdade e independência que detectamos nelas. E, no entanto, ficamos tão apavorados que tentamos privá-las desses atributos quando estabelecemos uma relação amorosa. Ou, como diz Sartre, "o amante quer ser amado pela liberdade, mas exige que essa liberdade, como liberdade, não seja mais livre".

Julieta - Mas então ninguém lembra que queremos ser afáveis, generosos e bons quando amamos uma pessoa?

Resposta - Immanuel Kant (1724-1804) notou isso, mas ele não achava que os amantes fossem sempre morais. Ele distingue o amor "prático" do amor "patológico". O amor prático seria uma disposição racional de agir de modo benévolo com quem precisa, independentemente de qualquer relação que possamos ter com eles. Amor patológico, por sua vez, é uma inclinação para ajudar a quem amamos, por razões bastante irracionais, porque as desejamos sexualmente. Atos de amor patológico provêm de paixões volúveis e não de uma apreciação racional do que seja certo fazer. É por isso que eles carecem, segundo Kant, da dignidade ética que possuem os atos de amor prático.

Julieta - Meus Deus! Será que algum filósofo disse algo positivo sobre o amor?

Resposta - Talvez a visão mais amena seja a de Aristóteles (384-322 a.C.), que nunca escreveu especificamente sobre o amor, mas sobre a amizade. Ele achava que uma boa amizade, na qual duas pessoas se unem no amor pela verdade, era o que podia haver de melhor.

Julieta - Não há dúvida; a propósito, onde está meu Romeu?

 

(Folha de S. Paulo. Caderno Mais!  P. 5. 14 de Fevereiro de 1999)

Alain de Botton é escritor britânico de origem suíça. Escreveu, entre outros, "Ensaios de Amor" (Rocco).

“ – Nunca amei, nunca senti por uma mulher uma destas paixões únicas, dominadoras, exclusivas, a que se sacrifica tudo; mas às vezes tenho pensado nisto e julgo haver concebido o que seria para mim o amor , se o sentisse. Se eu um dia amasse, parece-me que procuraria esconder de todos os olhos essa paixão; desejaria que ninguém ma suspeitasse nem por uma palavra, nem por um gesto, nem por um olhar. Ouvir estranhos falar sequer na mulher que eu amasse ferir-me-ia como uma profanação. Não escolheria confidentes, a ninguém revelaria esse segredo da minha alma. A mais alta, a mais casta voluptuosidade, que me produziria este amor seria o poder dizer, quando estivesse só: “Ninguém no mundo sabe, ninguém suspeita este mistério do meu coração, senão ela.”  Para ela só, para essa mulher que eu amasse quereria reservar todas as manifestações dos meus sentimentos, as mais sérias e as mais pueris, pertenciam-lhe; e permitir que outros as percebessem era profanar o culto. Só com ela, sim, todas as reservas acabavam; então no gesto, na palavra, no olhar revelaria inteira a minha alma, sem mistério nem discrição. Aspiraria assim nesses instantes todo o suave e delicado perfume do amor. Que o mundo, ao ver-me frio e concentrado, pensasse: “Aí está um homem de gelo, este não sabe amar”, e que ela só pudesse dizer: “Oh! Eu é que sei de que extremos é capaz aquele amor que ninguém suspeita.”

            (DINIS, Júlio. Os fidalgos da casa mourisca)