terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Correspondances - Charles Baudelaire

La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.





 TRADUÇÃO:



A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam escapar, às vezes, confusas palavras;
O homem ali passa por entre florestas de símbolos
Que o observam com olhares familiares.


Como longos ecos que ao longe se confundem
Em uma tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e como a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem.


Há perfumes frescos como carnes de crianças,
Doces como oboés, verdes como as pradarias,
- E outros, corrompidos, ricos e triunfantes,


Tendo a expansão das coisas infinitas,
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
Que cantam os transportes do espírito e dos sentidos.

 


   

O Fixador de Instantes (fragmento) de Mário de Sá-Carneiro

O Fixador de Instantes (fragmento) de Mário de Sá-Carneiro

O Instante! O Instante!
Não sei como os outros que desconhecem o meu segredo, a minha arte, podem viver da vida. Não sei.
Eu morria de saudade quando uma noite de quimera venci, realmente venci à força de ânsia, achando a mais bela das artes perdidas. Porque eu não creio ter descoberto a minha arte. Apenas a reedifiquei. Foi uma reminiscência longínqua — donde, ignoro — de muito longe, de além-sonho talvez, que me ensinou o segredo.
Acordei-o, não o fui. E tenho, é bem certo — posso gritar — tenho nas minhas mãos a vida que a todos, aos mais felizes, aos mais ricos, esguiamente foge, se desfaz sem remédio dor após dor.
Viver momentos radiosos, ter corpos áureos, bocas imperiais, e a glória ungir-nos em auréolas que ascendem — é isso ser feliz? Mentira! Pois tudo passa, esvoa tão rápido como o tempo. E sofremos da saudade: da saudade do que foi, a menos cruel porque já passou, da saudade do futuro — que desconhecemos — da saudade do presente, que sentimos bem o que é, e por isso se nos torna a mais contorcida de angústia.
O homem felicíssimo, em verdade, é um pobre recebedor de contas pelas mãos do qual, diàriamente, milhões se precipitam e que no entanto vê os seus filhos morrerem à fome. Assim por entre os dedos do homem venturoso a beleza caminha, é certo, mas não permanece; minuto a minuto se esgueira em rodopio alucinante. E mesmo que a beleza volte, se esse homem tiver alma, for um artista, os olhos de sombra se lhe marejarão de lágrimas — saudoso do que passou e não mais tornará, só porque já foi.
A vida, sim, a vida é uma estrela encantada e multicolor da lanterna-mágica da minha infância. No lençol que estendíamos e sobre o qual o meteoro fantástico se projectava inconstante, golfando novas formas, novas cores, eu, não podendo crer na sua mentira, enclavinhava as minhas mãos fascinadas, tentando embalde fixar sobre o pano, palpar, entrelaçar a maravilha que vertiginosamente se escoava, e era só luz a tingir-me os dedos, luz movediça — ilusão desfeita...

MIA COUTO

"Tudo me fascina. Sou muito ingénuo. Sou quase um rural visitando pela primeira vez uma cidade. Mas quero manter isso, apesar de saber que não é muito prático. A única maneira que tenho de ser feliz é ter esta sensação de estranhamento. Como se estivesse a olhar pela primeira vez as coisas. Essa é a minha receita para ser feliz."

Mia Couto

O ANALFABETO POLÍTICO - Bertold Brecht

10 de Fevereiro foi o aniversário de Brecht(1898). 

O ANALFABETO POLÍTICO
Bertold Brecht (1898-1956)


O pior analfabeto
é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo da vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.

O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.

Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política,
nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista,
pilantra, corrupto e lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

COMO UM ROMANCE – DANIEL PENNAC



"O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo ‘amar’... o verbo ‘sonhar’... Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: ‘Me ame!’ ‘Sonhe!’ ‘Leia!’ ‘Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!’”
- Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu em cima do livro. A janela, de repente, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa qualquer tentadora. Foi por ali que ele decolou. Para escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos a porta de seu quarto, nós o encontramos sentado junto à escrivaninha, seriamente ocupado em ler. Mesmo se nos aproximamos na ponta dos pés, da superfície de seu sono ele nos terá escutado chegar.
- Então, não está gostando?
Ele não vai nos responder que não, isto seria um crime de lesa majestade. O livro é sagrado, como é possível não gostar de ler? Não, ele vai dizer que as descrições são longas demais.
Tranquilizados, voltamos ao nosso aparelho de televisão. E é até possível que esta reflexão suscite um apaixonante debate entre nós e os outros como nós...
- Ele acha as descrições longas demais. É preciso entender, estamos no século do audiovisual, evidentemente os romancistas do século dezenove tinham que escrever tudo...
- Mas isto não é razão para pular a metade das páginas!
Não vamos nos cansar, ele voltou a dormir.

Essa aversão pela leitura fica ainda mais inconcebível se somos de uma geração, de um tempo, de um meio e de uma família em que a tendência era nos impedir de ler.
- Mas pára de ler, olha só, você vai estragar a vista!
- Sai, vai brincar um pouco, está fazendo um tempo tão bonito!
- Apaga! Já é tarde!
É isso, o tempo estava sempre bom demais para ler, ou então era a noite, escura demais.
Note-se que em ler ou não ler, o verbo já era conjugado no imperativo. Mesmo no passado, as coisas não davam certo. De um certo modo, ler, então, era um ato subversivo. À descoberta do romance se juntava a excitação da desobediência familiar. Duplo esplendor! Ah, a lembrança dessas horas de leitura roubadas, debaixo das cobertas, à luz fraca de uma lanterna elétrica! Como Anna Karenina galopava depressa-depressa para junto do seu Vronski, naquelas horas da noite! Eles se amavam, aqueles dois, e isso já era lindo em si, mas eles se amavam contra a proibição de ler e isso era ainda melhor. Eles se amavam contra pai e mãe, se amavam contra o dever de matemática não terminado, contra a “dissertação” a preparar, contra o quarto por arrumar, eles se amavam em vez de irem para a mesa, eles se amavam antes da sobremesa, eles se preferiam à partida de futebol, à colheita de cogumelos... eles se tinham escolhido e se preferiam a tudo mais... Ah, meu Deus, o belo amor!
E como o romance era curto.

COMO UM ROMANCE – DANIEL PENNAC

O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo ‘amar’... o verbo ‘sonhar’... Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: ‘Me ame!’ ‘Sonhe!’ ‘Leia!’ ‘Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!’”

Em Como um Romance (Rocco e L&PM, 2008, R$14), Daniel Pennac (1944) fala sobre como as crianças são interessadas no mundo da leitura, em aprender a ler, têm curiosidade nas histórias que seus pais contam ao pé da cama antes de dormir. Mas ao crescer, a obrigação da leitura imposta pela escola, faz com que essa vontade do desconhecido se torne cansativa, sem prazer.
No ensaio, os pais contam, através da visão do casal, como a criança passa do amor aos livros para a aversão total. Durante o processo, Pennac cita vários títulos e autores, a forma do amor aos livros, o clamor para que sejam lidos. E o texto transmite certo desespero, uma tristeza imensa pela falta da cultura da leitura, da cumplicidade com o livro, torná-lo amigo, mas não guardar seus segredos, gritá-los para que todos compartilhem de um mesmo prazer: ler.
Na página 69 temos uma triste e real citação de Klaus Mann (autor de Mefisto), que pode descrever bem a realidade da escola, também da brasileira, onde deveriam adquirir o gosto pela leitura:
“Tudo que possuo de cultura literária adquiri fora da escola”.
A maioria aprende a ter desprezo pelos livros e muitas vezes com incentivo em casa: “enquanto que hoje... Os adolescentes são clientes totais de uma sociedade que os veste, os distrai, os alimenta, os cultiva: onde florescem os mcdonald’s e as marcas de jeans, entre outros”.
Como um Romance foi publicado pela primeira vez em 1992, a primeira edição brasileira data de 1993, apesar dos 20 anos que separam a primeira edição do ano em que estamos, se faz totalmente atual. E também para aqueles que leem, mas esqueceram do prazer que a leitura proporciona, o autor diz:
Eles tinham simplesmente esquecido o que era um livro, aquilo que ele tinha a oferecer. Tinham se esquecido, por exemplo, que um romance conta antes de tudo uma história. Não se sabia que um romance deve ser lido como um romance: saciando primeiro nossa ânsia por narrativas”.
“... eles não valorizam a criação, mas a reprodução de ‘formas’ preestabelecidas, porque são uma empresa de simplificação (quer dizer, de mentira), quando o romance é a arte da verdade (quer dizer, de complexidade) (...) Resumindo, uma literatura do ‘pronto para o consumo’, feita na fôrma e que gostaria de nos amarrar dentro dessa mesma fôrma”, diz Pennac sobre os maus romances, aqueles que são feitos para vender e sem nenhum amor por parte do “autor”, como se dá hoje, tantos títulos e muitos sem nenhum sentido além da busca incessante pelo dinheiro.
Há ironia sem dosagem quando fala dos métodos:
“Não importa... ele intervém, bem a propósito, para nos lembrar que a obsessão adulta do ‘saber ler’ não data de ontem... nem a estupidez dos achados pedagógicos que se elaboram contra o desejo de aprender”.
Como um Romance é exatamente a relação que deveríamos ter com os livros. Uma obra para apaixonados pela leitura, que sentem essa ânsia, esse desejo de que todos deveriam se interessar pelo mundo dos livros, afinal ele é mágico.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

AO GÁS (O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL) - CESÁRIO VERDE


AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.

Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

 

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.

 

As burguesinhas do Catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

 

Num cutileiro, de avental, ao torno,

Um forjador maneja um malho, rubramente;

E de uma padaria exala-se, inda quente,

Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

 

E eu que medito um livro que exacerbe,

Quisera que o real e a análise mo dessem;

Casas de confecções e modas resplandecem;

Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

 

Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos reverberos,

E a vossa palidez romântica e lunar!

 

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,

Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!

Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,

Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

 

E aquela velha, de bandós! Por vezes,

A sua traîne imita um leque antigo, aberto,

Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,

Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

 

Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

 

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes

Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;

Da solidão regouga um cauteleiro rouco;

Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

 

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim!